Aos 8 anos, Queren Apuque Alcantara passava noites no colégio particular em que estudava ajudando seu pai a rejuntar pisos e assentar tijolos – durante o dia, ele trabalhava em outras obras, e fazia o bico noturno para ajudar a pagar a mensalidade. Por ter nascido sem visão em um olho e ter dificuldade de interação social na infância, a mãe preferiu que ela frequentasse uma escola particular. Nascida em Boituva (SP), Queren adorava estudar e foi a primeira da família a se formar no Ensino Médio. Hoje, aos 29, é biomédica, concluiu recentemente o mestrado em Toxinologia no Instituto Butantan e faz doutorado em Bioquímica na Universidade de Utah, nos Estados Unidos.
Quando criança, Queren demorou para começar a falar e não interagia muito com as pessoas, mas o estudo sempre foi algo que a cativou. Ela queria fazer medicina, já que a família nunca teve acesso a um atendimento médico de qualidade e os pais tinham uma série de problemas de saúde. No Ensino Médio, no entanto, decidiu seguir por outro caminho e ingressou na Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR) para estudar licenciatura em Biologia.
“Eu sempre fui diferente, e minha mãe nunca soube dizer a palavra, mas hoje eu entendo que é ‘neurodivergente’. Eu era ‘esquisitinha’, não me dava bem com as pessoas, não falava quando era pequena”
Queren se encantou pela pesquisa científica e conseguiu diferentes oportunidades no exterior
As diferenças não impediram Queren de perseguir seus objetivos. Na faculdade de Biologia, ela viu o interior de um laboratório pela primeira vez, e sua vida começou a tomar um rumo em direção à pesquisa científica. Com incentivo de seu orientador, ela passou no programa do governo Ciência Sem Fronteiras e foi estudar na faculdade americana Washington & Jefferson.
Durante o intercâmbio, que durou um ano e meio, a estudante foi selecionada para um estágio no hospital psiquiátrico da Faculdade de Medicina de Harvard. Ela atuou em um projeto de pesquisa sobre manipulação genética em modelos animais para combater a dependência química.
“A ciência começou a tocar mais na minha vida, porque eu tenho dois irmãos que são dependentes químicos. Meu olhar pessoal foi um incentivo para seguir o caminho da pesquisa”
De volta ao Brasil em 2015, Queren se prometeu que retornaria para os Estados Unidos para fazer doutorado no futuro. A experiência internacional a estimulou a querer fazer “ciência de verdade”, mesmo sabendo dos desafios que a esperavam, como a falta de investimento na pesquisa brasileira. Por isso, no ano seguinte, saiu da licenciatura e ingressou no curso de Ciências Biomédicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.
Em uma visita ao Butantan em 2017, Queren se encantou pelo Laboratório de Dor e Sinalização e mudou-se para São Paulo para fazer estágio no grupo da pesquisadora Vanessa Zambelli. Com o Programa de Apoio à Permanência e Formação Estudantil (PAPFE), ela conseguiu um auxílio para morar na capital paulista. “Mesmo na universidade pública, você ainda tem muitos gastos com moradia e alimentação. Se não fosse a permanência estudantil, eu não estaria aqui hoje”, ressalta.
Durante o mestrado, passou alguns meses em um laboratório parceiro do Butantan na Universidade de Stanford, também nos Estados Unidos, onde estudou uma molécula que ajuda a reduzir a dor crônica. Mais uma vez, a ciência e sua vida pessoal se cruzavam, já que a mãe tinha desenvolvido dor crônica no nervo ciático por conta da diabetes.
A carreira acadêmica continuou decolando e Queren cumpriu a promessa que se fez alguns anos antes: ela passou em um programa de doutorado nos Estados Unidos, na Universidade de Utah, oferecido pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) em parceria com o projeto norte-americano Fulbright.
Quando soube que foi aceita no programa, a biomédica viveu um misto de euforia e angústia: na mesma época, o pai tinha sofrido um Acidente Vascular Cerebral (AVC). Mas a mãe, que na primeira viagem internacional da filha chegou a passar mal de preocupação, desta vez foi sua maior torcedora: disse que Queren não podia desistir por nada, que era importante estudar para “ser alguém na vida”. E lá foi ela.
“Minha mãe me chama de andorinha: diz que eu gosto de voar e fazer ninho em vários lugares. Estar longe é difícil, mas me sinto bem de fazer algo que poderá beneficiar as pessoas”
A pesquisadora encontrou na ciência um combustível para solucionar problemas de saúde pública - e curar suas próprias dores
O estudo salva vidas
Na pandemia, a mãe de Queren, que trabalhava como empregada doméstica, acabou sendo infectada pela Covid-19. Nessa época, a jovem estava morando em São Paulo para fazer o mestrado no Butantan e voltou para Boituva para cuidar da mãe. Ela a acompanhava em todas as consultas e se guiava pelos estudos para conversar com os médicos e orientar as pessoas do bairro, em uma época em que ainda se sabia muito pouco sobre a doença.
Queren conta que, em determinado momento, a mãe teve um mal-estar após tomar um xarope receitado pelo médico, e ela pesquisou e descobriu que ele reduzia o efeito do remédio para diabetes. “Imediatamente tiramos o xarope e ela melhorou. Fiquei muito orgulhosa dos meus estudos, pois ajudei a salvar minha mãe. Infelizmente, um vizinho que estava tomando o mesmo medicamento e também era diabético acabou falecendo”, lamenta.
A cientista enxerga em situações como essa que o conhecimento pode, literalmente, salvar vidas. Sempre que visita sua cidade, fala sobre o assunto com familiares, amigos e conhecidos para incentivá-los a seguir esse caminho. “Eles me olham como se eu fosse muito diferente, como se o estudo fosse algo inimaginável para eles. Mas não é.”
Com as portas que abriu na vida, Queren não mede esforços para ajudar a família. Trabalhando nos Estados Unidos, ela conseguiu comprar um aparelho auditivo para o pai, que aguardava pelo dispositivo há 5 anos na fila do Sistema Único de Saúde (SUS). “Ele ficou muito emocionado”, conta.
Após já ter questionado se a ciência era mesmo "o seu lugar", Queren busca se tornar para os outros a referência que ela não teve na infância
Ciência diversa para problemas diversos
Embora ainda não tenha um diagnóstico fechado, Queren se vê como neurodivergente e, agora que tem a oportunidade, pretende buscar um atendimento especializado. Como mulher da periferia, com deficiência e LGBT, a jovem busca inspirar outras pessoas. Ela acredita no poder transformador da diversidade em todos os espaços, especialmente na ciência.
Em sua equipe nos Estados Unidos, a doutoranda conheceu pessoas de diferentes cantos do mundo, como Camboja, Vietnã, Zâmbia e Nigéria, que trazem preocupações para a pesquisa que por vezes não estão em pauta. “Com pessoas de contextos diversos atuando na ciência, você traz novos olhares para os mesmos problemas, e também novos questionamentos para resolver.”
Queren descobriu no exterior um outro universo onde a ciência caminha mais rápido, graças à facilidade de acesso aos recursos – um insumo que demoraria meses para chegar aqui, por ser importado, chega em uma semana lá, por exemplo. Seu desejo para o futuro é poder atuar como uma ponte entre esses dois extremos e contribuir para o fortalecimento da ciência brasileira.
“Quero voltar ao Brasil, pois vários ninhos da andorinha que eu sou estão lá. Meu sonho é atingir uma posição em que eu possa promover grandes mudanças. Mas se eu só conseguir mudar a vida de quem está ao meu redor, já valeu a pena”
Reportagem: Aline Tavares
Fotos: José Felipe Batista/Comunicação Butantan